quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Uma década com Mafalda...

Personagem ícone da politização da América Latina tem edição especial lançada pela editora Martins Fontes



Tudo bem que Mafalda é um ícone do grande subtexto político por trás de toda produção cultural latino-americana. Ao falar sobre seu desgosto em ter que tomar sopa diariamente, sabemos que não é - exatamente - sobre sopa que o cartunista Joaquín Salvador Lavado, o Quino, está falando. A sopa da Mafalda é uma espécie de gosto amargo que ficou na boca de todos os nascidos nesta parte do planeta: o sabor ocre de anos de ditadura, da vivência sob o estigma de ser “colonizado” e a sombra de um futuro incerto diante do rótulo de “Terceiro Mundo”. Não é fácil ser latino-americano, assim como não é fácil a Mafalda ter que tomar sopa todos os dias.


Na leva de publicações que trazem à tona o legado do argentino Quino ao mundo das histórias em quadrinhos, a editora Martins Fontes coloca mais um título no mercado com a intenção de nos mostrar como a sopa da Mafalda ainda dá um caldo em se tratando de metáforas políticas. Dessa vez, chega às prateleiras “10 Anos com Mafalda”, a reunião das tiras da menina inquieta e politizada - em seus 10 anos de publicação (entre 1964 a 1973), que ecoava questões tão cotidianas quanto necessárias. O grande lance aqui não são as tiras, propriamente ditas, já que, para quem é fã da Mafalda, elas já apareceram em uma série de outras publicações - principalmente no “livrão” intitulado “Toda Mafalda”. A questão que ganha relevo é, justamente, a organização das tiras a partir de assuntos específicos. Os “capítulos” são divididos ora por assuntos - “a família”, “a rua”, “a escola”, “assim vai o mundo”, “férias”, “TV”, “Mafalda e a sopa” (olha aí como a sopa é importante: ela tem um capítulo inteiramente dedicado a este “subject”) - ora por personagens. Sob estas retrancas, estão agrupadas tirinhas que vão ecoando aquele assunto, fazendo reverberar a visão ora ácida, ora poética, de Mafalda com sua casa, com seus pais, com a Argentina e, fundamentalmente, com o mundo.


Quando chegamos no momento dos capítulos sobre os personagens que orbitam em torno da Mafalda, temos um salto qualitativo ainda mais curioso. Quem conhece os amiguinhos e coadjuvantes interlocutores da Mafalda sabe que, eles, por si só, já renderiam publicações específicas. E olha que delícia: neste livro, Manolito, Felipito, Guile, Susanita e Miguelito ganham capítulos que funcionam, também, como pequenas publicações dentro do próprio livro.


Se Manolito, com todo o seu estigma comercial, de “vendedor nato”, funciona como metáfora de um capitalismo terceiro-mundista; é a personagem de Susanita que, na ausência do discurso político, nos lembra como o político está presente mesmo nas suas lacunas. Só lembrando: Susanita é aquela amiguinha da Mafalda, loira, de cabelo meio “armado”, cujo principal sonho é casar e ter filhos. Numa das mais engraçadas e reflexivas tirinhas, Susanita se desembesta a falar sobre como planeja sua vida. “Primeiro, vou ser uma senhora, depois vou comprar uma casa bem grande, depois um carro lindo, depois joias e depois vou ter netinhos”, ela comenta. Aí Mafalda, com sua fina ironia, sintetiza: “O único defeito é que isso não é vida, é um fluxograma”. A ingenuidade de Susanita parece ser o senso comum, a classe média, a vida média a que grande parte dos latino-americanos está submetida.


É também em Susanita que está expresso o olhar ácido de Quino sobre o assistencialismo na América Latina. A certa altura, Susanita diz a Mafalda que “corta” sua alma “ver tanta gente pobre”. Emenda: “quando formos senhora, vamos criar juntas uma fundação de ajuda ao necessitado”. Mas, sabe para que Susanita quer fazer tal fundação? “Vamos organizar banquetes com frango, peru, leitão e tudo...”. Não parece o destino de muitas primeiras-damas e de muitas “fundadoras” de Organizações Não-Governamentais (ONGs)?


Um verdadeiro achado desta edição é uma longa entrevista do jornalista italiano Rodolfo Braceli com o cartunista Quino, feita em abril de 1987. Recluso, calado, quase personagem de si mesmo, Quino fala sobre sonhos, vinhos e sobre a sua relação “tempestuosa” com sua personagem-menina Mafalda. No final, vendo-se “preso” ao gigantismo que Mafalda tinha se tornado, Rodolfo Bracel pergunta se Quino não tem saudades dela? “Claro que não. Se Mafalda quer viver, eu também quero... E é isso que eu sei!”.


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